quinta-feira, 20 de maio de 2010

Educação intercultural ambiental e religiosidade afro-brasileira

Educação intercultural ambiental e religiosidade afro-brasileira

Profa. Dra. Cristiana Tramonte /CED/UFSC/ NÚCLEO MOVER

O povo-de-santo (praticantes das religiões afro-brasileiras) como parte da população desprivilegiada socialmente, integra a parcela diretamente atingida pelos desequilíbrios ambientais e conseqüente escassez de recursos, que geram o desaparecimento de indispensáveis elementos rituais, ameaçando a tradição e causando perdas espirituais, já que, particularmente na Umbanda e Candomblé os elementos naturais são fundantes dos dogmas religiosos.
A urbanização - e consequente degradação ambiental - são vistas como responsáveis por este processo e a mercantilização seu resultado mais imediato, nivelando aparência e essência. O caminho possível é a construção de alternativas rituais, com a aquiescência das divindades.
Pela centralidade que a ecologia cumpre na espiritualidade afro-brasileira, a religião é responsável por estruturar a visão dos adeptos e, em alguns casos, resulta em iniciativas no cotidiano ritual e material que visam à maior preservação. Compreende-se que a falência dos elementos naturais resulta em falência espiritual e religiosa.
Neste caso, entende-se que os denominados “terreiros”, locais aonde se pratica a religiosidade afro-brasileira tem uma função educativa nos planos intercultural e ambiental, normatizando hábitos e criando valores éticos junto a seus integrantes.
Sob o prisma da Intercultura, as práticas das religiões afro-brasileiras apresentam-se como um campo híbrido de construção de identidade no qual emergem novas estratégias de organização que apontam novas perspectivas para a educação intercultural.
As religiões afro-brasileiras, cujo comando cultural pertence à população negra, congregam a diversidade das origens étnicas e culturais do país, consolidando-se como signos de “brasilidade”. O artigo aqui proposto visa a apresentar a experiência educativa comunitária e intercultural de dois grupos, dois “terreiros” de prática religiosa, completando assim, um ciclo de significações que tenta compreender a problemática do ponto de vista de sua complexidade e da integralidade quando tratamos dos sujeitos destas vivências.
Essa multiplicidade de inter-influências produz um campo eminentemente educativo no qual os desdobramentos não são unívocos, mas múltiplos e complexos; é esta relação que produz o campo intercultural.
Entende-se Intercultura conforme a define Giacalone (1998): esta colocada a relação intercultural quando as diferentes dimensões entram em relação, “colocam-se em jogo”: “Se a multiculturalidade pode ser a convivência ...entre grupos distintos, a intercultura é a possibilidade de um projeto, de uma troca, na qual existe a reciprocidade de olhares e de intenções, na qual se dá o confronto entre identidade/diferença”.
Este é um universo de significados de extrema relevância se tomarmos em consideração os fanatismos e extremismos de toda ordem que surgem e ressurgem nesta virada de milênio.
Nas relações endógenas dos grupos religiosos afro-brasileiros, analisaremos especificamente o trabalho de formação e desenvolvimento desenvolvido pela Tenda Cabocla Marola do Mar, como forma de ilustrar como ocorre a prática educativa. 434
SEMEANDO O FUTURO: a Natureza e o povo-de-santo
As religiões afro-brasileiras tem como uma de suas bases a confluência entre divindades e natureza, construindo uma totalidade. Esta característica é ainda mais marcante no candomblé. Lody (1987) descreve como a Roça do Ventura, na Bahia, um candomblé “exemplar”, mantém em equilíbrio a natureza no qual se instala: árvores e rios são moradas de divindades, folhas sagradas (e medicinais) são plantadas e mantidas, uma mata abriga a memória dos “voduns” e as construções são feitas basicamente com materiais rústicos, além dos animais criados soltos e integrados. No candomblé não há representação de elementos da natureza, mas as divindades são os próprios elementos da natureza1. A movimentação corporal, as danças, a arte, os objetos, tecidos, comidas e todo um vasto conjunto de elementos simbólicos articula-se na busca da integração à natureza, ou seja, às divindades.
Segundo ainda o autor, o candomblé, originário da África, é uma congregação de sobrevivências étnicas que teve grande disseminação e reinterpretação como cultura afro-brasileira em nosso país, uma produção cultural que constrói a aliança entre os planos do sagrado e do humano. A sociedade do candomblé é controlada e protegida por dois elementos fundamentais: a natureza, o meio ambiente, corporificados e santificados nos orixás e as expressões dos antepassados. A música, dança, canto, gestos e alimentos emanam a força vital e as máscaras, esculturas, adornos e pinturas contribuem na unidade do grupo social, simbolizando seus ciclos e passagens. “Assim, a energia da natureza e os heróis e reis divinizados são alguns dos principais motivos do plano do sagrado, íntimo e cotidiano para o homem africano. Esta presença está na casa, no santuário, no comércio, nas tarefas, nos campos, nos rios, no mar, no desenvolvimento das técnicas artesanais...desenhando dessa maneira o próprio ser cultural.” (p.9)
Dentre o povo-de-santo, a relação mais estreita com a Natureza é dos adeptos do candomblé, pela sua essência mesma. Entretanto, os outros rituais aqui analisados - Umbanda e Almas e Angola - também conservam esta ligação em graus diferenciados, pois, como já vimos anteriormente, na Grande Florianópolis é significativa a marca da “africanização” nestes cultos. Isto se explica, entre outros fatores, pelo fato de que a Umbanda - a protagonista das religiões afro-brasileiras locais – surge como uma estratégia de abertura de espaços, mas, na verdade, manteve enérgicos traços de africanização nas práticas e preceitos, ao contrário de outros locais do país, nos quais preponderou, em alguns momentos, o “embranquecimento”. Já Almas e Angola é, ela própria, derivada da Umbanda “mesclada com o candomblé”, como sintetizaram vários depoimentos.
Assim, podemos generalizar no caso da Grande Florianópolis, afirmando que as religiões afro-brasileiras aqui estudadas tem como um dos pilares fundantes míticos a harmonia com a natureza, guardando as gradações diferenciadoras entre candomblé, Almas e Angola e Umbanda. Por esta representação inspirada na Natureza, sofrem os impactos da
1 Como ilustração podemos citar, no candomblé Gêge-Nagô as seguintes correspondências entre orixás e elementos naturais: Exu, fogo; Ogun, fogo, ar, ferro, minerais; Oxóssi, mata; Obaluaiê, terra; Ossaim, folhas, plantas; Oxumaré, arco-íris; Xangô, raio, trovão; Oxum, água doce; Iemanjá, água salgada; Iansã, vento, tempestade; Oxalá, ar. Silva, 1994 435
degradação desta e passam a alterar progressivamente seu desenvolvimento ritualístico e até mesmo dogmático visando à adaptação.
Em períodos históricos anteriores2, quando o processo de urbanização não havia se intensificado como neste final de século, o povo-de-santo buscava estabelecer os terreiros em áreas com vegetação pujante aonde pudesse desenvolver os rituais de oferecimento e homenagem ao santo. Com o escasseamento de tais áreas e conseqüente valorização imobiliária, tornou-se impossível manter nestes locais as casas de culto, e estas passam a sediar-se nas habitações mesmas dos sacerdotes, geralmente localizadas em áreas urbanas com pouco espaço livre para o cultivo de elementos da natureza, tanto de árvores sagradas, como das plantas essenciais à manutenção espiritual dos rituais e do grupo.
As conseqüências desta transformação são inúmeras, gerando preocupações entre o povo-de-santo. O desaparecimento de espécies essenciais, principalmente da flora, e a degradação em geral dos elementos naturais estão entre as mais mencionadas. O desaparecimento gera, historicamente, o desconhecimento, que ameaça a preservação da tradição, outro grande motivo de apreensão entre os religiosos:
“Você não está encontrando mais um comigo-ninguém-pode3 lá na mata, ninguém sabe o que é um quebra-macumba, um cipó milombo4, e naquela época todo umbandista conhecia. Hoje você não tem mais. A Rosita foi até Porto Seguro para encontrar a baguinha de São Thomé, coisa que no morro você encontrava”. (Mãe Graça)
“A gente vê com muita preocupação porque a hora que acabar Oxum no nosso planeta acabou tudo. O ouro de Oxum é água potável. Aí vão morrer as árvores, animais, consequentemente ou o homem vai migrar para outras esferas porque já destruiu aqui mesmo, ou vai ter uma consciência de preservação muito grande. A situação está ficando difícil. O que quero de folhas eu tenho, mas tem plantas que só tem lá prá cima porque o clima é mais quente. E se acabar a de lá? Substitutas existem, mas tem as imprescindíveis, aí o elo perdido se acabará”. (Pai Juca)
A degradação dos elementos naturais essenciais para os preceitos implica grande perdas espirituais, na opinião de alguns adeptos, criando um certo constrangimento entre religiosos e divindades. O “improviso” requerido pela falta de condições próprias nem sempre é encarado como a solução ideal, mas como a única saída em alguns casos:
“Era bom quando tinha natureza porque ali puxa corrente de força. Aonde está tudo desmatado hoje, nem tem local para a gente assentar uma obrigação ritual certo, onde vai encontrar mata virgem? Isso é uma quebra muito grande pro santo e para a gente, porque a entidade fica cobrando quando a gente não arreia as obrigações certas. A gente arreia como pode, aonde pode arriar.” (Mãe Cristina)
2 Registros históricos informam a existência de calundus no século XVIII, que teriam antecedido às casas de candomblé do século XIX e atuais terreiros de candomblé. Silva, 1994.
3“Comigo-ninguém-pode = planta ornamental...usada para proteger pessoas e ambientes contra maus fluidos”. Cacciatore, 1988
4 Também conhecido por Cipó-mil-homens: Bom para aliviar o estômago. Silva, 1993. Nomes vulgares: angelicó, aristolóquia, capa-homem, cipó-mata-cobras, giboinha, jarrrinha, milhomens, papo de galo. Camargo, 1998 436
“Fica difícil com a falta de espaço. A imagem de uma casa-de-santo era a roça: ervas, bichos, fogão a lenha, tudo na base da natureza, pode plantar e criar tudo necessário para o ritual. Só que hoje a maioria dos terreiros não tem espaço...quanto mais passa o tempo, vai fechando mais casas por causa disso.” (Pai Leco)
A urbanização, que resulta em estreitamento dos espaços e degradação dos recursos naturais é vista como uma das responsáveis pelas rupturas: no plano espiritual, implicando em profundas alterações da essência dos preceitos; no plano material, resultando no fechamento de terreiros e conseqüente enfraquecimento da religião. A urbanização surge assim, como um desafio, diante do qual alguns sentem-se impotentes:
“O rapaz comprou terreno no Córrego Grande onde passa cachoeira, vai construir o barracão dele. Só que já estão cercando. A CASAN já cortou, não tem mais queda d’água. São coisas que o desenvolvimento está tirando e a gente não sabe como impedir...Temos que fazer o amaci5 de madrugada, fazer as rezas, ir prá mata, pedir a Ossanha e recolher as ervas, no sereno, energizadas. Se já apanhou as ervas há muito tempo, não tem mais vida, acabou. Precisa uma mesa de obrigação prá Exu. Tem que procurar o encruzo de chão batido, está dificílimo, tudo asfalto. Campo não tem mais e quando tem, você não pode ir porque os vizinhos não deixam você fazer oferenda...Os sacudimentos6 que eu fazia nestes locais não tem mais condições, faço dentro do barracão, depois levo e entrego lá. Iaô eu levo na cachoeira, quase ganhei uma corrida lá do Poção, a mulher achou que não podia fazer lá, que ia sujar as águas, mas insisti e fiz.” (Pai Leco)
Ao mesmo tempo em que os rituais sofrem transformações advindas da deterioração ambiental, a religião é responsável também por estruturar a visão ecológica desta população. Neste sentido, contribui para uma preocupação maior com a questão, já que a busca permanente pela harmonia entre ser humano e natureza lhe é inerente. Esta procura constante sobrevive nas adversidades, dinamicamente, transformando-se continuamente, agregando novos membros, redefinindo valores e posturas e confrontando espiritualidades ancestrais com novas exigências. Prova desta contribuição é que, na Bahia, nos anos 80, entre as conquistas do “povo-de-santo” daquele estado está a inclusão na Constituição Estadual da obrigatoriedade de preservação de mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados à religião afro-brasileira.
“O negro sempre teve cuidado com meio ambiente, porque é aí que está o orixá, na cachoeira limpa vive Oxum, na mata bem cuidada Ossaim cuidando das folhas; na chuva que cai, está Iansã. Se você for numa casa-de-santo e não tiver erva plantada não é casa-de-santo. No mínimo tem que ter arruda ou comigo-ninguém-pode ou do santo da casa, ou do Exú; ou mariuô7, peregun8, um saião9. Sem as ervas não tem orixá, orixá não responde.” (Pai Leco)
5 “Amaci = líquido preparado com folhas sagradas.” Cacciatore, 1988
6 “Cerimônia ritual para limpar e purificar a pessoa.” Cacciatore, 1988
7 “Mariuô = saiote de folhas de palmeira desfiadas que Ogun veste em certas cerimonias de candomblé. Colocado na entrada da casa, afasta os eguns.” Cacciatore, 1988
8 “Peregum = planta usada no candomblé para diversas finalidades: serve para cerca, e, na África é muito usada nos bosques sagrados como limite. Parece ser o chamado pau d’água.” Cacciatore, 1988
9 “Saião = folha-da-costa e folha-da-fortuna.” Cacciatore, 1988 437
“Há uma ligação do povo-de-santo com a natureza: ervas, frutas, folhas, árvores, etc. Só que muito antes de usar esse nome ‘ecológico’ a Umbanda e o Candomblé já usavam a natureza com respeito, porque cada elemento é um ser que merece respeito porque corresponde a um orixá.” (Yalorixá Elzeni)
O relatório sócio-ambiental sobre Florianópolis “Uma cidade numa Ilha” (CECCA,1996) aponta que, com o avanço da urbanização, a população rural foi perdendo os meios de produção e reprodução de sua cultura, os espaços de produção da vida simbólica, suas brincadeiras, histórias e referências. Entretanto, em relação à população de origem negra e suas práticas culturais não se pode dizer que tenha havido simplesmente uma trajetória de desintegração. Com o fenômeno da urbanização, surgem, por exemplo, as entidades associativas, entre elas, os terreiros e Federações das religiões afro-brasileiras que representarão um signo de resistência cultural, expansão social e fortalecimento comunitário importantes para o enfrentamento dos novos desafios. Embora, em nível local, as religiões afro-brasileiras não congreguem exclusivamente a população negra, nascem e crescem sob inspiração de suas raízes culturais e, historicamente, aglutinaram grande parte da população pobre, que aí encontrou espaço e oportunidades de desenvolver-se espiritualmente, constituindo a maioria dos adeptos.
Como parte da população desprivilegiada socialmente, o povo-de-santo também integra a parcela diretamente atingida pelos desequilíbrios ambientais e conseqüente escassez de recursos. Deléage (1993) indica a importância que exercem as representações que as sociedades fazem de sua relação com a natureza, na medida em que podem incrementar práticas devastadoras ou, ao contrário, buscar inibi-las. A prática religiosa representa, de fato, um elemento que vem somar-se à tomada de consciência sobre a questão e, em alguns casos, resulta mesmo em pequenas iniciativas no cotidiano ritual e material que visam a uma maior preservação:
“Entrou uma jararaca no quarto do santo, foi prá debaixo de Iansã. Uma irmã minha queria matar a cobra. Não deixei! Se ela foi se abrigar debaixo da Yansã da casa, vou matar? Isso aqui era um horror de tanta cobra! Não sabia o que fazer! Aí na Bahia disseram prá eu assentar Oxumaré! Fiz um pepelê10 para assentar o orixá. No dia aparece uma coral no portão. Eu disse: ‘põe ela para fora, mas não mata!’ Daqui a pouco passou uma jararaca. Foi só acabarmos de preparar tudo, estava a coral toda enrolada, depois do axé feito. Então, bati a cabeça no chão, dei paó11, a coral desceu, foi embora e até hoje nunca mais apareceu. Ela veio saudar o axé.” (Pai Juca)
“Vai na cachoeira deixar oferenda e larga completamente suja. É uma agressão, você não está contribuindo, está agredindo a natureza. Se o orixá é natureza, se Oxum é a cachoeira, como vou virar as costas e deixar sujeira?” (Mãe Tereza)
10 “Pepelê = altar dos orixás, quando em forma de prateleiras, às vezes de cimento, dentro do ilê-axé (casa do axé) onde estão colocadas as vasilhas com os assentamentos, vestidas, muitas vezes, com as roupas dos orixás.” Cacciatore, 1988.
11 “Paó = Palmas que servem como sinal de que se necessita comunicar algo (por gestos, pois não se lhe pode falar) à iniciando em recolhimento na camarinha.” Cacciatore, 1988. 438
“Fui a Santo Amaro, Lages, joguei sementes lá. Tem que contribuir de alguma forma. Atrás da casa tenho arruda, guiné, erva da jurema, quebra-macumba, babosa e já plantei em alguns pontos...Quando saio, vou com um saco de sementes jogando por aí...Tenho respeito com a natureza, quem é espírita tem que fazer isso.” (Valcir)
Há uma clara consciência da necessidade do cuidado com a natureza, até mesmo como estratégia de neutralização do preconceito e de construção da aceitação da opinião pública em relação às religiões:
“Nosso terreiro vai na praia de São Miguel, a gente toma cuidado com as oferendas: não pode deixar embalagem de plástico, nada que polua. Os médiuns têm consciência de que nossa religião é muito criticada, sofrem preconceito e falam: ‘vamos limpar tudo prá ninguém falar da gente.” (Mãe Eldeni)
Os terreiros são vistos por alguns adeptos como potenciais formadores de uma consciência ecológica:
“Aqui em casa, todo mundo é doutrinado: ninguém vai entregar oferenda e deixar lixo. Isso é uma das causas que estão tirando nosso espaço...É mais fácil a comunidade aceitar você se não fizer sujeira, vendo fazer um trabalho, as águas estão ali, joga arroz, feijão, o peixinho come. Agora joga sacola de plástico vai sujar a cachoeira. Tem que partir das casas-de-santo esse cuidado, a educação dos membros.” (Pai Leco)
A exemplo do que ocorre com outros temas relativos ao povo-de-santo, também em relação à preservação dos recursos naturais, a autocrítica deste é implacável quando fala de seus pares: não isenta de responsabilidade os adeptos e não hesita em inclui-los claramente entre os culpados pela degradação. Embora os religiosos reconheçam que está em curso um processo de desequilíbrio ecológico que tem causas macroeconômicas, sociais e políticas, apontam a participação do povo-de-santo na deterioração ambiental. Entre suas ações, uma das mais auto-criticadas é o depósito de lixo nos locais de oferendas e obrigações às entidades espirituais:
“Vi uma placa no Poção que achei linda: ‘A comunidade aceita que na mata moram os espíritos e espírito não se alimenta de lixo.’ Estão corretos! Arria sua oferenda, o que for saco plástico, vidro, trás de volta! Você vai, deixa tudo lá, se cada um fizer isso, está aquele monte de lixo, acabou.” (Pai Leco)
Além da deterioração ambiental causada pelos próprios religiosos e severamente censurada em nível interno, por resultar inclusive em descaracterização espiritual, outra preocupação do povo-de-santo neste sentido é com a comercialização indevida de produtos essenciais. Quer dizer, há uma clara percepção de que a urbanização, da forma como ocorre atualmente, um dos motores da degradação dos recursos naturais, cria dificuldades para a manutenção das antigas práticas, notadamente aquelas que implicavam numa relação mais estreita com a natureza, tais como oferendas em matas, cachoeiras e localização de plantas para os rituais. Tais dificuldades acabam abrindo caminho e favorecendo práticas que os religiosos consideram ilícitas, tais como a venda de produtos religiosos que, comercializados, perdem o sentido e o valor espiritual. Eles apontam recorrentemente o 439
caso das ervas para determinados preceitos, que, para serem eficazes do ponto de vista ritualístico, deveriam ser plantadas, colhidas e secadas com determinações divinas bastante rígidas.
“A erva que já está seca, numa emergência tudo bem. Agora cultivada tem muito a ver com a nossa energia que cuida daquela planta: você prepara aquela terra, vê a planta crescer, vibra com uma folhinha nova, aquilo só vai fazer bem para alguém.” (Rosita)
“Dependendo da sessão, processo 3 ervas prá defumação. Quem dá o encaminhamento é a entidade, prá harmonizar meu terreiro. Só que pode não ser o mesmo para outro, não tem receita pronta. Por isso comprar não tem valor, porque não está de acordo com a entidade, é qualquer coisa. As ervas são colhidas nas horas próprias, cada erva tem um horário vibratório:” (Pai Elisson)
Diante da degradação e da impossibilidade de manter as tradições, surgem as alternativas rituais. Estas direcionam-se principalmente no sentido de procurar manter a essência religiosa em condições adversas resultantes das transformações na natureza e no meio ambiente em geral, contando, evidentemente, com a condescendência e apoio das entidades espirituais.
“Senão puder fazer como manda a tradição, realiza de outra forma. Não pode botar obrigação prá Exú numa encruzilhada de barro por causa do asfalto, vai no mato, peça licença à Ossaim, à Oxossi e pode botar a obrigação: ele anda em todos os pontos, vai aceitar! Ou entrega para as águas que é o início da vida. Os matos estão cada vez mais distantes. Se não pode dar comida ao orixá, enterra. A terra come, porque é viva, o orixá recebe.” (Pai Edemilson)
“Corre-se o risco de comprar algo que não seja o que se está procurando. Mas eu confio muito no plano espiritual. Se não for aquilo, eles [guias espirituais] energizam de uma forma que a finalidade vai ser atingida”.(Mãe Eldeni)
Diante da degradação, alguns adeptos buscam garantir uma área que possa fornecer o equilíbrio natural e os elementos necessários aos rituais, resultando em verdadeiras estratégias de sobrevivência espiritual:
“Tenho o sítio da família. Quando preciso vou colher folhas de manhã; ervas e folhas de santo tenho no quintal, ainda dá prá fazer!” (Pai Edemilson)
“Temos um terreno na praia, tenho todas as ervas que a gente precisa e quando não tem, vou atrás. Aqui tem dois pedacinhos de chão, já estou preparando as mudas, porque às vezes a Vó está em terra e precisa naquela hora. Vai um pouco da criatividade: não dá para ter um canteiro, faz um vaso.” (Rosita)
Mesmo diante das inúmeras dificuldades para manter a relação entre religião e natureza, o povo-de-santo demonstrou estar considerando esta como um eixo fundamental, que articula as dimensões espiritual e material. A vida no planeta e a regência dos orixás 440
estão densamente interligadas nos elementos naturais, de maneira que interdependem para sobrevivência ou para desintegração.
“Não se consegue fazer Iaô sem ir à mata. A partir do momento que não tiver, acabou tudo, a vida também. Não só morrem todos os orixás como também os seres humanos. O próprio orixá está perdendo a força dele na natureza porque cada desmatamento é uma parte de Oxóssi e Ossaim que morrem. Cada cachoeira que seca é parte de Oxum morrendo...São os orixás que controlam a natureza. Eles não controlando, não existe mais possibilidade de vida.” (Pai Edemilson)
“Nós, seres humanos, é que estamos destruindo. Não é um orixá contra o outro. Estamos destruindo a área do orixá. O dia que não tiver mais ervas em todo o território nacional, o orixá Ossaim sumiu. E se um orixá faltar, tudo desaba. Se um guardião sair, acaba tudo.” (Pai Leco)
Existe a percepção clara de que há um descontrole que foge ao poder dos orixás. Por isso, o futuro é uma incógnita para o povo-de-santo, que vê a degradação com apreensão.
“Vocês acham que o homem está procurando o quê na Lua, Marte? No momento que o homem fizer colônia lá, ele não está mais preocupado com a ecologia do planeta. Nosso mundo vai acabar quando Xangô, rei dos astros, mandar os meteoros para o céu e destruir, mas acho que a Terra ainda é recuperável. Tem que criar outra consciência de preservação.” (Pai Juca)
Entretanto, o povo-de-santo não está isolado em suas preocupações. Como rede religiosa, expressa preocupações que vem progressivamente ocupando a cena quando se trata do debate sobre meio ambiente, aí incluída a questão da natureza. O Tratado de Educação Ambiental do Fórum Global Rio-92 já especificava a necessidade de uma perspectiva que promovesse a diversidade cultural como pré-condição para a construção de uma sociedade ecologicamente sustentável. Para isto, a participação comunitária também é considerada uma articulação local fundamental para refletir sobre a dimensão global, o que remete à importância da rede do povo-de-santo nesta discussão. Valorização de tradições culturais e promoção das redes locais até as mundiais, são algumas das metas apontadas pelo Tratado e que dizem respeito aos adeptos das religiões afro-brasileiras.
A seguir, examinarems a dinâmica interna de um terreiro e seus processos educativos interculturais
A dinâmica metodológica da educação intercultural e ambiental
Sob o prisma da Intercultura, as práticas das religiões afro-brasileiras apresentam-se como um campo híbrido de construção de identidade no qual emergem novas estratégias de organização que apontam novas perspectivas para a educação intercultural.
As religiões afro-brasileiras, cujo comando cultural pertence à população negra, congregam a diversidade das origens étnicas e culturais do país, consolidando-se como signos de “brasilidade”. O artigo aqui proposto visa a apresentar a experiência educativa comunitária e intercultural de dois grupos, dois “terreiros” de prática religiosa, completando assim, um ciclo de significações que tenta compreender a problemática do 441
ponto de vista de sua complexidade e da integralidade quando tratamos dos sujeitos destas vivências.
Essa multiplicidade de inter-influências produz um campo eminentemente educativo no qual os desdobramentos não são unívocos, mas múltiplos e complexos; é esta relação que produz o campo intercultural.
Entende-se Intercultura conforme a define Giacalone (1998): esta colocada a relação intercultural quando as diferentes dimensões entram em relação, “colocam-se em jogo”: “Se a multiculturalidade pode ser a convivência ...entre grupos distintos, a intercultura é a possibilidade de um projeto, de uma troca, na qual existe a reciprocidade de olhares e de intenções, na qual se dá o confronto entre identidade/diferença”.
Este é um universo de significados de extrema relevância se tomarmos em consideração os fanatismos e extremismos de toda ordem que surgem e ressurgem nesta virada de milênio.
Nas relações endógenas dos grupos religiosos afro-brasileiros, analisaremos especificamente o trabalho de formação e desenvolvimento mediúnico desenvolvido pela Tenda Cabocla Marola do Mar.
Em suas relações exógenas, procuramos desvendar o trabalho educativo intercultural comunitário desenvolvido pela Tenda Caboclo Cobra Verde.
O trabalho de educação intercultural na Tenda de Umbanda Cabocla Marola do Mar
Vários centros religiosos desenvolvem, junto a seus médiuns, um trabalho de formação e desenvolvimento, que caracteriza uma ação intercultural em seu sentido mais amplo. Segundo Fleuri (1999) “na atividade formativa ressaltam-se as formas e conteúdos da cultura interiorizada pelos indivíduos na vida cotidiana, a variedade ...das experiências com que estabelecem contato...” É nesta perspectiva que analisaremos o trabalho desenvolvido pela T.U. Cabocla Marola do Mar pela excelente sistematização do trabalho, confecção de material pedagógico e pelo lugar central que a preocupação educativa ocupa no grupo como um todo. A atividade de estudo e pesquisa da Tenda atua como um suporte das ações de atendimento e desenvolvimento.
A Associação Beneficente Tenda de Umbanda Cabocla Marola do Mar é uma sociedade civil, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, de caráter cultural, educacional, social e filantrópico “voltado especialmente para o estudo e difusão da cultura afro-brasileira”12. A mãe-de-santo (ou chefe-de-terrreiro) responsável é Eldeni Fernandes Camargo.
Entre seus objetivos estão o estudo, prática e divulgação da cultura afro-brasileira, a prática da caridade como dever social e princípio de moral e como exercício pleno de solidariedade e respeito ao ser humano. Além disso, promove o desenvolvimento de trabalhos educacional, esportivo, social e de defesa e benefício da comunidade na qual a Tenda se insere. Embora a Tenda pratique, de fato, os dois últimos aspectos citados, nos deteremos no primeiro, aquele que diz respeito diretamente à compreensão e prática religiosas, inseridas num contexto macro de cultura afro-brasileira.
A organização institucional segue a configuração tradicional: presidente de honra, presidente e vice-presidente, primeiro e segundo secretários, primeiro e segundo tesoureiros e diretores de departamentos.
12 Estatuto social. Associação Beneficente Tenda de Umbanda Cabocla Marola do Mar. 13 de maio de 1996. 442
A organização religiosa é formada por um conjunto formado pelos guias espirituais13, médiuns e pela chefe de terreiro Mãe Eldeni, filha de Iemanjá e Ogun e entidades, tendo como guia de frente14 a Cabocla Marola do Mar e Omolocô Caboclo Lírio Branco (coordena todos os trabalhos realizados na tenda, sob orientação da primeira)15
Eldeni exemplifica como se dá o acolhimento e definição das funções dos médiuns e suas entidades, em um auto-aprendizado coletivo das “linhas” que vão se agregando e num processo de contínua transformação, totalmente aberto à inclusão de novas contribuições espirituais e coerente com a opção democrática preponderante neste centro.
“A Cecília começou como cambona, e depois veio o Omolu. A Milena tem o Povo do Oriente. Ela veio e ensinou a todos como era. Se chegar outras entidades (marinheiro, baiano), a gente vai incluindo”.
O cronograma dos trabalhos inclui o revezamento das sessões destinadas às entidades com os períodos de estudo, atendimento e desenvolvimento, assim descritos pela mãe-de-santo.
“Segunda é atendimento: médiuns e entidades se revezam. Esses que estão começando não dão atendimento, ficam só na corrente16; na quinta, é desenvolvimento: cada um chama suas entidades para atender os médiuns. Quando o médium começa, perde muito o equilíbrio. No desenvolvimento ele vai se concentrando mais, se firmando... pode se exercitar...então, não é para o público, é só para os médiuns porque eles também querem conversar com os guias que incorporam aqui.”
13 Dados retirados sem alterações da Agenda Umbandista. ABTUCMM, 1999. Outras entidades da Tenda - Linhas* de Povo d’água - Cabocla Marola do Mar; de Caboclos – Caboclo Lírio Branco (Caboclo de Xangô); Cabocla Juremi (Cabocla de Oxoce); de Ogum – Ogum Sete Espadas; de Xangô - Xangô de Alafim; de Oxalá (Almas) - Preto Velho Pai Tomás; Rita Benedita; de Erê - Mariazinha; do Oriente - Princesa Iara; Ciganos – Carmem; Exús: Pomba Gira Maria Padilha; Exú Sete Capas.
Coordenador dos Trabalhos de Estudo do Evangelho: Irmão Lázaro.
* “Linha = faixa de vibração, dentro da grande corrente vibratória espiritual universal correspondente a um elemento da Natureza, representada e dominada por uma potência espiritual cósmica, um orixá também chamado Protetor e que é chefe dos seres que vibram e atuam nesta faixa afim...É subdividida em Falanges, dirigidas por representantes do orixá...” Cacciatore, 1988
14 “Guia de frente = o mesmo que ‘orixá de frente’. Guia principal da pessoa, seu Protetor, seu anjo-da-guarda. Também ‘guia de cabeça”. Cacciatore, 1988
15 Na parede do centro há um lembrete: “A tenda de Umbanda que freqüentas é coordenada pela entidade Cabocla Marola de Mar: é ela que zela por ti e tuas entidades. Nada é feito sem sua aprovação. O Caboclo Lírio Branco, caboclo de Xangô é a entidade encarregada pela nossa guia espiritual de dirigir todos os trabalhos de desenvolvimento, desobsessão* limpeza magnética** organização das sessões, etc. Devemos a estas entidades nosso respeito, carinho, gratidão, amor, confiança e sobretudo nosso esforço para contribuir com o bom andamento dos trabalhos”.
* Refere-se à ação de desmanchar o ato de “obsedar”. “Obsedar = perseguir. É o trabalho de correntes atrasadas que leva os perseguidos às mais tremendas situações, inclusive loucura... O obsessor, consciente ou inconsciente estende sua maléfica atuação não somente sobre uma pessoa, mas diversas...Para se livrar, devem os perseguidos procurar um centro kardecista ou de Umbanda, respeitando o que for indicado pelos protetores”. Pinto, s/d.
**“Limpar a casa = praticar atos rituais de purificação para tirar do terreiro influências espirituais negativas” Cacciatore, 1988
16 Corrente de energia espiritual. 443
No binômio “atendimento e desenvolvimento” reside a base teórico-prática do grupo. Ou seja, na concepção de seus médiuns, não é possível praticar o primeiro junto ao consulentes que procuram o centro, sem uma ação sistemática no sentido de fortalecimento e aprofundamento espiritual, ou seja, o desenvolvimento. Assim, o grupo divide-se entre estes dois diferentes momentos de sua atuação.
O atendimento localiza-se entre os momentos mais importantes e mesmo a razão principal de ser da maioria dos centros, principalmente da Umbanda, que tem como um dos eixos centrais a prática da caridade. Entretanto, não se trata apenas de uma “doação” dos religiosos a seus consulentes, aqueles que procuram seus serviços espirituais. Trata-se de uma troca. As entidades aconselham, orientam e realimentam espiritualmente os médiuns, auxiliando até mesmo em dificuldades concretas da vida cotidiana, tais como problemas de saúde.
“Faço o desenvolvimento dos médiuns e depois eles escolhem qual a entidade que eles querem conversar. E conversam para resolver o problema. Porque a Umbanda basicamente resolve problemas: emocional, com filhos, profissionais, de relacionamentos e de saúde principalmente. Nós temos três entidades aqui que receitam muitos remédios, né? Minha família, se os médicos dependessem de nós morriam de fome [risos] porque raramente vamos ao médico.” (idem)
Estudo, pesquisa, observação e diálogo compõem a educação mediúnica. A preocupação da atividade de estudo e formação busca superar um certo praticismo espontaneísta identificado em outros grupos, que impede que o médium aprofunde conhecimentos e supere o nível da intuição e mediunidade espontâneas. O objetivo é que sua eficácia espiritual também aumente. Ou seja, há uma clara associação entre saber adquirido e mediunização e esta só pode ser plena e houver preocupação com a aquisição daquele.
“O que observo nos terreiros é que pegam a pessoa e dizem: ‘Tu bota uma roupa branca, compra uma guia de anjo-de-guarda’ e enfia o médium no terreiro, roda ele como se fosse um pião. O que acontece? O médium vai indo, indo, ouvindo daqui, dali. Ele não tem uma noção do porquê e do prá quê. Então, tem que educar esse médium. Ele tem que estudar, pesquisar, perguntar, muito, muito e sobretudo estar atento porque cada entidade que vem nos mostra tanta coisa, é só observar. Um médium ignorante não pode fazer muita coisa por ele e nem pelas pessoas que vem procurá-lo. Tem um ditado que diz: ‘Se o pote está sujo, a água não vai sair limpa. Ele tem que estudar” (idem)
São diversas as fontes informativas que podem auxiliar na formação de um médium. Elas podem ser orais ou escritas. Uma delas, citada pela mãe-de-santo Eldeni e a mais importante, segundo confirmação de vários entrevistados são as orientações emanadas das próprias entidades ou guias espirituais. Além da forma oral, através do diálogo com o médium este tipo de informação pode assumir ainda, como no caso da Tenda analisada, o formato de textos psicografados pela mãe-de-santo. O grupo possui também apostilas impressas e uma “agenda umbandista” elaboradas por seus participantes, que são utilizadas durante as sessões de estudo com informações sobre entidades do terreiro, horários dos trabalhos, textos de aconselhamento escritos pela mãe-de-santo ou retirados de alguma obra 444
publicada, lembretes sobre deveres do médium,17 credo e hino da Umbanda, calendário comemorativo dos orixás, prece para abertura dos trabalhos, pedido de proteção, banhos de descarga, etc.
Além disso, existem também as fontes religiosas clássicas, como o Evangelho, os textos empíricos e teóricos escritos por adeptos ou estudiosos das religiões afro-brasileiras e também a Internet. Há, portanto, uma combinação harmônica entre fontes escritas, orais e virtuais, oriundas do plano espiritual e material.
“O Evangelho é um só, com variações: o Kardecismo usa de um jeito, o catolicismo de outro, o evangélico de outro. Pegamos o Evangelho segundo o espiritismo, estudamos as questões da Umbanda. Os médiuns têm perguntas e durante os trabalhos não dá para responder. Então oriento: escreve pro dia do estudo a gente esclarecer. Utilizamos livros escritos sobre Umbanda. Não como manual prá ver como se faz um trabalho, isso de jeito nenhum! [risos] Que fique claro: ver como se faz oferenda para Ogun, não se consulta em livro! Nessas questões as próprias entidades nos orientam, respondem às questões de remédios, de porque fazer isso, não fazer, né? Usamos também pesquisa pela INTERNET.” (idem)
Dentro do trabalho formativo desenvolvido no grupo é objetivo primordial assimilar a diversidade de conhecimentos. A preocupação é conhecer as variadas linhas de pensamento dentro do grande campo dos autores que escreveram sobre as religiões afro-brasileiras. Entretanto, há uma insistência na imprescindibilidade da orientação oriunda do plano espiritual e da maior relevância desta no conjunto da atividade de estudo e pesquisa. Há também uma preocupação com a atualização, adaptação e evolução do conhecimento dos médiuns. Ou seja, não há uma concepção do saber como algo estático, parado no tempo, mas inserido num movimento que transforma continuamente seu conteúdo.
“Estudamos os fundamentos, como outros autores encaram a Umbanda: dependendo da descendência espiritual dele, ele tem uma visão. Tem aqueles que são pesquisadores, observam e dão o parecer. A gente lê prá ver o que estão dizendo...Porque uma coisa é o que a gente sente e pratica e outra é o que acaba passando para os outros. Tem que aprender, evoluir, se adaptar. Repito: não por exemplo, como se põe um filho na Umbanda, preparações que tem que fazer. Isso não se aprende em livro! Isso é a própria entidade que inicia os trabalhos espirituais dentro do terreiro quem ensina.” (idem)
Acoplada a esta concepção de construção do conhecimento como um processo dinâmico e plural, está a intenção de democratização do saber, aspecto bastante original da T.U. Cabocla Marola do Mar, exemplar entre o povo-de-santo local. Em grande parte dos terreiros, a mãe ou pai-de-santo abre e conduz as “giras”, as cerimônias rituais. Há
17 A título de ilustração: “No dia anterior ao trabalho, o médium não deve ter relações sexuais; ficar o mais calmo possível, mentalizando coisas boas, chamando pelos guias mentalmente; evitar bebidas alcoólicas e fumar; tomar banho de descarga antes da sessão; chegar 10 minutos antes do início, acender sua vela de anjo de guarda e fazer suas orações; procurar decorar os Pontos Cantados na Banda; estar atento aos trabalho e guias para aprender; auxiliar quando necessário; manter sua pasta de médium atualizada; estudar seu conteúdo e perguntar quando tiver dúvidas; providenciar o material necessário para seus guias: cigarros, bebidas, etc.; ser pontual e não faltar, manter a mensalidade em dia; manter bom relacionamento com irmãos de fé; evitar fofocas e conversas improdutivas” Agenda Umbandista, ABTUCMM, 1999 445
alguns raros casos nos quais, sendo a mãe ou pai-de-santo muito idosos, doentes ou estando limitados por razões diversas e possuindo um Pai ou Mãe Pequenos de extrema confiança, estes abrirão e conduzirão os trabalhos. Mas o que chama a atenção no caso aqui estudado é a explícita intenção da mãe-de-santo de romper esta obrigatoriedade e promover em seu terreiro a democratização do saber, através do revezamento de funções rituais que, em geral pertenceriam ao grau hierárquico mais alto no terreiro, mas que neste caso é exercido por outros médiuns, como forma de “práxis” de seu futuro religioso. Não há, de sua parte, qualquer limitação física ou espiritual que impeça a mãe-de-santo Eldeni de abrir e conduzir trabalhos; há apenas a vontade declarada de democratizar alguns papéis consolidados como exclusivos do chefe-de-terreiro, permitindo assim a autonomia do médium. O educador Paulo Freire já alertou para a importância da práxis no processo educativo, que promove a reflexão sobre a ação prática do indivíduo como alimentadora do processo de aquisição de saber. Parece ser esta a opção educativa da T.U. Cabocla Marola do Mar.
“Outra coisa que diferencia meu ritual dos outros, é que normalmente o pai-de-santo sempre abre os trabalhos. Eu não abro quase nunca. Os médiuns têm uma escala: quem abre os trabalhos, quem faz a limpeza...Quem abre os trabalhos, segue esse ritual [mostra um livro sobre o altar] que eu deixo. Está prontinho e... abre os trabalhos....Se estou preparando um médium para ser pai-de-santo ele só vai aprender fazendo! Não posso esconder isso, tenho que abrir” (idem)
Coerente com a opção da democracia interna e da divisão de responsabilidades, algumas noções “do santo” adquirem uma significação bastante específica. É o caso do “segredo” religioso e ritual. Para a mãe-de-santo Eldeni, o segredo limita-se aos conhecimentos específicos que resultam da combinação espiritual do médium e de seu lugar na escala hierárquica e que, por esta razão, não são aplicáveis a outro, o que justificaria porque não são coletivizados. Entretanto, acima do conhecimento transmitido pela mãe-de-santo está sempre a vontade do guia espiritual, que deve preponderar sobre qualquer outra determinação, como já vimos anteriormente.
“Esses segredos, ou seja, a magia da Umbanda, a gente só transmite para um médium quando ele se recolhe para se tornar pai ou mãe-de-santo. No retiro já se começa a passar os fundamentos secretos, ou melhor, não é secreto, é a essência – Fundamentos Essenciais – sempre obedecendo à descendência dele. Por exemplo: tenho um filho-de-santo que é pai-de-santo e filho de Ogun. Então, tenho que dar para ele os fundamentos de Ogun dizendo: ‘Consulta teu Pai de Cabeça18 e vê se é isto mesmo o que ele quer.’” (idem)
A democratização do conhecimento não significa, portanto, sua vulgarização ou banalização, mas desdobra-se em duas vertentes: além do mencionado acesso à ação prática ritual como forma de exercício preparatório no processo educativo, significa o fornecimento de ferramentas para aquele que já está preparado para determinado poder religioso a fim de que possa exercê-lo sem depender de outrem. A construção da autonomia
18 “Pai-de-cabeça = orixá masculino protetor principal de uma pessoa (homem). Tem como juntó* outro orixá feminino, a mãe. No caso de uma mulher é geralmente firmada a mãe-de-cabeça”. Cacciatore, 1988
* “Juntó = orixá auxiliar na proteção do orixá dono-da-cabeça sobre o filho. Segundo santo pessoal”. idem 446
significa, portanto, subsidiar o médium de acordo com a escala hierárquica religiosa em que se encontra e que lhe dá direito à obtenção das informações, juntamente com o conseqüente aumento da carga de responsabilidade material e espiritual.
“O básico eu fiz: fui lá e fiz a firmeza19 do terreiro dele, expliquei como tinha que ser e outras coisas que a gente só diz para um médium quando ele vai ser pai-de-santo, conscientizá-lo da responsabilidade. Isto não se fala para um médium que está iniciando porque ele acaba confundindo e fazendo tudo errado. É como na escola: ao jardim o que é do jardim; ao primeiro grau o que é primeiro grau. Assim é na religião, tem que ser aos poucos, porque chega na metade do caminho muitos desistem e esses conhecimentos não podem ficar com uma pessoa que não adquiriu a noção de responsabilidade e de como fazer uso deles. Senão a gente estaria fazendo um monte de aprendiz de feiticeiro por aí, não é? [risos]” (idem)
Se o segredo tem a medida da dimensão do conhecimento que cabe ao indivíduo conforme seu local na escala religiosa e sua descendência espiritual, não cabe, portanto, manipulação do conceito no sentido de utilizá-lo como subterfúgio ou meio de exercer a mistificação religiosa.
“Para mim, não tem esse negócio de segredo. Às vezes é desculpa porque a pessoa não sabe responder o que foi perguntado. O segredo mesmo é quando o médium se deita pro santo e recebe as mensagens do orixá. O chefe de terreiro fica só orientando. Por exemplo, nenhum dos meus médiuns sabe o que está enterrado aqui, mas não interessa, porque quando eles forem ter o terreiro deles, vão ser outras coisas enterradas, porque os santos são outros, as características de cada um varia. No mais, segredo não existe. Os ditos segredos são trabalhos que se faz para os mais variados fins.” (idem)
Pelo exposto, vimos que os terreiros das religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis apresentam um potencial significativo como verdadeiros centros educacionais de prática intercultural, de aprendizagem social, cultural, religiosa e política.
O exame das práticas, concepções e desafios da educac’~ao intercultural e Ambiental das religiões afro-brasleiras indica que o povo-de-santo da Grande Florianópolis, representa, além de uma importante amplitude social, uma extensiva organização espacial em forma de rede urbana que articula mensagens simbólicas e projetos comuns através de relações informais (Scherer-Warren, 1995). Esta teia humana, apesar de sua invisibilidade aparente na atualidade, possui uma expressiva presença social e histórica junto a seus integrantes e simpatizantes, articulando-se, ademais, pela instância da busca espiritual e essencial do ser humano no cosmos.
19 “Firmeza = o mesmo que segurança. Conjunto de objetos com força mística (axé) que, enterrados no chão protegem um terreiro e constituem sua base espiritual” . idem

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